Dentre tantas coisas que precisamos conversar sobre maternidade o autocuidado é uma das mais necessárias. É impossível falar de dedicação em tempo integral ( ou quase ) à outro alguém sem visitar esse lugar. Mas acontece. A maternidade, como tudo na sociedade moderna é vista de forma fragmentada. Uma caixinha onde se rotula uma mulher não enxergando nela mais nada. Não se sabe mais nada sobre aquela mãe ( que é mulher), como ela cuida dos outros, de si, da sua esfera individual. O que sabemos é que uma mulher é mãe e “cumpre sua obrigação ” , mas não nos perguntamos o que está nos bastidores, na vida real e prática de quem exerce essa função social importantíssima que é o maternar. Isso se dá por que a sociedade moderna-ocidental não consegue integrar aspectos de uma mesma coisa e não consegue reconhecer na figura da mãe outras potencialidades.
Eu cresci numa casa onde as mulheres levantavam cedo e terminando o café da manhã, já iniciavam ” a arrumação da casa “. Dia após dia, ritualisticamente. Pratos pra lavar, casa pra varrer, pano pra passar, comida pra cozinhar e paralelamente, algumas crianças pra cuidar. Isso significava alimentar, trocar fraldas, dar banho, limpar toda sujeira gerada por peraltice, educar, dizer Não, dizer o por quê do Não, ouvir choro, acalentar choro, fazer dormir e encaixar tudo isso em uma estrutura teoricamente simples de horários de refeições e acontecimentos rotineiros pontuais. Como escola, trabalho, cursos, consultas médicas e todos os compromissos e demandas que inventamos socialmente desejando fazer caber nas 24 horas. Demanda essa que sabemos que as crianças não respeitam por não fazer parte da sua natureza.
Aos homens restava levantar da mesa e sair.
No meu primeiro ano de maternidade eu quase enlouqueci e antes mesmo de o meu filho nascer eu já estava pensando em como ser a dona de casa perfeita que eu nunca quis ser. Como proporcionar a ele boa comida, roupa lavada, cama cheirosa, colo em tempo integral e amamentação em livre demanda ao mesmo tempo em que limpava os espaços, lavava as coisas sujas e providenciava as refeições, passeios e tarefas didáticas. Os resquícios dos ensinamentos que recebi de mulheres que cuidaram de mim já começavam a se manifestar. Esse ideal de fazer o trabalho de uma comunidade inteira sozinha não deu certo na prática e eu logo descobri.
Como uma mulher que ficou em casa durante os três primeiros anos do filho por falta de opções emocionalmente confortáveis pra ele, eu me vi, como uma mulher não pertencente à classe média que sou, no mesmo ciclo vicioso que minhas ancestrais. Acordar e dormir todos os dias, em função da manutenção do lar e da manutenção emocional e psicológica de um pequeno ser. Sem tempo de olhar pra dentro, de fazer algo além.
Um belo dia e esse dia aconteceu depois de alguns anos, eu li um texto sobre mulheres e produção de conteúdo que nunca mais saiu da minha cabeça. No texto havia a pergunta: Quantos homens precisam dar conta da casa antes de produzir uma foto, um texto, um livro ? Quantos deles deixam a pia intacta e brilhante antes de sair pra ganhar o mundo?
Foi aí que comecei a pensar aonde essa obsessão por manter tudo em ordem iria me levar enquanto indivíduo separado dos meus filhos. Quem me ensinou isso? Quem forjou em mim a ideia de que eu preciso ter uma casa de revista? Quem me disse que eu só tinha permissão para viver depois de servir? Por que não me sinto autorizada a me expressar além da esfera materna, antes de deixar tudo perfeito? Há outra maneira de pensar esse tempo, essa rotina e minha percepção sobre manutenção da casa sem que isso violente principalmente minha chama criativa? São questionamentos que deveríamos nos convidar à fazer diariamente, pois estamos perdendo escritoras, fotógrafas, bailarinas. Estamos suprimindo nossa Potência em nome de uma crença, de que estamos aqui antes de mais nada para servir.
Mas o que isso tem a ver com autocuidado?
Partindo do princípio de que autocuidado está além das nossas práticas superficiais ( e necessárias ) de beleza, entender que adequar o tempo às necessidades de conexão com a própria essência é talvez a maneira mais eficaz e plena de amor próprio que existe. Pode trazer uma sensação real de realização e aconchego tão em falta no universo das mulheres-mães. Ser quem se é, entrar em contato com isso. Não abrir mão disso. Eis a única coisa a qual podemos nos agarrar para não nos perder de vista nessa missão que é formar seres humanos para o mundo. Na falta de uma rede, que é a realidade da maioria, pensar em soluções para manter a saúde mental já nos dá força para continuar.
Sendo assim, quem sabota nosso autocuidado? Além de claro o próprio sistema não adequado às necessidades de um cuidador? As estruturas fazem isso, mas, como podemos escapar das regras moldando nossa visão diária, deixando para depois aquilo que pode ser deixado pra depois, priorizando o que é urgente e permitindo-se não controlar aquilo que não está no nosso controle? É vital controlar tudo?
Há um tempo que me autorizei a existir, além do campo materno. Foi um caminho sem volta, cheio de julgamentos e também na medida do possível, cheio de momentos meus. Esses momentos de conexão com a mulher que eu sou antes de me tornar mãe, onde observo de fora seu desenvolvimento, seu florescer, suas projeções.
Pra essa mulher nascer, a Casa de Revista precisou deixar de existir.