Cadernos de receitas são tão íntimos quanto cartas de amor. Afinal, neles estão guardadas receitas (para alguns instruções) cuidadosamente selecionadas e que representam o gosto e a preferência da sua dona (ou dono). Além disso, aquelas páginas também são portadoras de “segredos que se derrama[am] em poças de afeto e largas porções de aconchego”.
Ah… isso sem falar na caligrafia, um capítulo à parte. As letras, um capricho, quase desenhadas, enumeram os ingredientes e descrevem minuciosamente o modo de fazer, ou melhor, as “fórmulas mágicas” que estampam aquelas páginas e se transformam em uma coleção de gostosuras.
Alguns cadernos eram escritos durante o noivado das moças e faziam parte do enxoval. Muitos desses manuscritos se tornaram verdadeiros patrimônios, objetos de herança, sendo transmitidos da avó para mãe, e desta para filha. Assim, permaneciam por décadas na mesma família, reproduzindo e consolidando uma tradição culinária familiar.
Lendo esses cadernos “que receitam” é possível sentir o carinho, a doçura (mesmo sendo receitas salgadas) em cada página, muitas delas manchadas por algum ingrediente que, durante a execução da receita, caiu despretensiosamente na folha de papel e assim acabou por ajudar a reforçar a identidade e a história desse caderno de delícias. Páginas que se tornaram amareladas pela ação do tempo. Impossível ler as receitas sem ler essas marcas. Imbricadas, tornam-se uma coisa só.
Passear por essas páginas, com marcas do tempo e dos fazeres, é capaz de inspirar até os que não sabem cozinhar. Estes, certamente, sentirão vontade de se aventurar por panelas, forno e fogão. E, talvez, até desenvolverão uma “paixão proibida, alimentada pelo fogo e pelos aromas”. O problema, às vezes, é entender algumas medidas um pouco estranhas: “até dar o ponto”; “um tanto bom”; “um prato de açúcar”; “tempere a gosto”; “um tico de”… enfim, decifrando (ou pelo menos tentando) essas dosagens um tanto subjetivas, tudo acaba dando certo.
Apesar da dificuldade dos iniciantes nas artes da cozinha em entender esse vocabulário culinário muito peculiar, que é, na verdade, “a língua certa do povo, porque é ele que fala gostoso o português do Brasil” (Manuel Bandeira). E, no caso das receitas, é nessa linguagem da cozinha que moram os segredinhos culinários…
Esses cadernos são tão especiais, que neles dá para observar até a mudança na ortografia das palavras… uma preciosidade! Além disso, também contam um pouco da história, dos hábitos e preferências do período em que foi escrito. Quais os pratos preferidos? Quais eram as receitas da moda? Quais eram os ingredientes mais comuns? O que as famílias preferiam servir para as visitas? O que era considerado um prato especial? Quais as referências daquelas receitas?
Tudo isso forma um mural cultural que nos ajuda a entender costumes e comportamentos de uma época. Mas, mais importante do que tudo isso, é lembrar que receitas são palavras, letras… e elas só se transformam em comida por uma ação. Um agir que envolve amor e doação.
E aí, será que te estimulei a começar a escrever um caderninho de receitas?
Uma eterna estudante, apaixonada pelas linhas: as escritas e as bordadas. Compartilha sua paixão pela etiqueta como uma forma de espalhar pequenas gentilezas e delicadezas pelo seu caminho.
Tem como propósito disseminar a etiqueta como uma ferramenta inclusiva capaz de potencializar as conexões humanas.
Que lindo esse texto!