Quem nunca demonizou a época de menstruação que atire a primeira pedra. Há quem não considere uma fase “infernal”, mas que, se pudesse, optaria até por não passar mensalmente pelo mesmo processo. Ser mulher é crescer ouvindo discursos que afastam a consciência sobre a naturalização do corpo feminino, e um desses, é que a dor e o desconforto, tanto físico quanto social, são automaticamente aliados de um período completamente saudável – e necessário – da vida reprodutiva.
De todas as consequências que essa ideologia traz no desenvolvimento como mulher, uma delas influencia bastante no diagnóstico tardio de uma doença que, atualmente, afeta 6,5 milhões de brasileiras: a endometriose.
Pra quem ainda não sabe, a endometriose é caracterizada como uma doença crônica, de grande relação genética, desenvolvida durante o período reprodutivo. O endométrio, mucosa que reveste a parede do útero e que descama no período menstrual, se aloja em outros órgãos do corpo, causando uma dor que se confunde com “fortes cólicas menstruais”.
Um levantamento feito em 2020 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) chama atenção quando é colocado ao lado de uma das últimas pesquisas da Sociedade Brasileira de Endometriose e Ginecologia (SBE): 53% das entrevistadas nunca ouviram falar sobre a doença.
Quantitativamente falando, não faz sentido que uma enfermidade tão comum seja, ao mesmo tempo, tão misteriosa. E é aí, entre diversos fatores, incluindo as imposições sociais sobre o corpo feminino, que a doença se tornou uma verdadeira saga de terror para muitas pacientes.
A negligência e o atraso na descoberta
Cólicas mais fortes do que o normal e menstruação descontrolada marcaram a adolescência da estudante de 23 anos de Relações Públicas, Larissa Madeira. O início do desenvolvimento da endometriose para ela é desconhecido, já que, desde os 14 anos o anticoncepcional faz parte da sua rotina. Na época, o assunto “endometriose” não era algo tão anônimo, já que, segundo a estudante, várias celebridades divulgaram entrevistas falando sobre a doença com a intenção de dar maior visibilidade.
Aos quase 21 anos e ainda sem saber que era portadora, Madeira relata das várias “idas e vindas” no uso do anticoncepcional, e de como isso pode ter piorado o quadro. “Depois das pausas no remédio, comecei a sentir dores fortíssimas que me renderam diversas internações no hospital. Foi nesse momento que eu decidi falar com meu médico e investigar se era realmente a endometriose. Mais tarde, descobri que tenho 4 focos da doença: nos dois ovários, útero e na entrada do reto”, diz.
Além das dores, outros sintomas também eram frequentes, como inchaço na barriga, consequente da inflamação no endométrio, tonturas e enjoos frequentes. Mesmo assim, a estudante só tomou a iniciativa de ir ao médico quando as dores passaram a ser constantes nas relações sexuais.
A atitude é bem comum entre as portadoras, que costumam adiar o resultado por confundirem as dores intensas com o ato da penetração. Durante a relação, a endometriose pode afetar não somente causando desconforto, mas também contribui na falta de interesse e dificulta orgasmos. Das 500 mil mulheres entrevistadas pelo projeto “ProSex” da Universidade de São Paulo (USP) em 2019, 43,3% das recrutadas afirmaram passar por esse sintomas na “hora H”.
Ginecologista e especialista em oncologia pélvica, a médica Ana Sofia Calheiros alerta para essa “normatização” das dores nas relações, e afirma que isso ocorre porque mulheres não são ensinadas a cuidar da sua saúde sexual. “Sentir dor nunca é normal, e muitas acreditam que elas são comuns tanto na hora do sexo quanto na menstruação, o que é completamente equivocado. A falta das queixas é um dos principais fatores para o diagnóstico tardio e evolução do quadro, que leva muitas a infertilidade”, completa.
Já dá pra imaginar que o diagnóstico de uma enfermidade tão pouco falada enfrenta diversas barreiras até o início do tratamento, como é o exemplo da Larissa, que só descobriu a doença quase 8 anos depois, o tempo médio entre o início dos sintomas e o resultado. Dessas barreiras, a negligência da classe médica configura um dos primeiros lugares em relação à qualidade de vida das portadoras de endometriose.
Nesse caso, é importante se ater aos dados para continuar a discussão: O Gapendi, grupo destinado a dar apoio e informações a quem convive com a doença ou estuda sobre ela, programou uma entrevista com mais de 3 mil mulheres, e constatou que 57,3% das entrevistadas precisaram passar por pelo menos 3 médicos até o diagnóstico certeiro.
Novamente, a concepção de que desconfortos, seja qual o nível for, fazem parte do ciclo menstrual, são reproduzidos por diversos médicos durante a consulta, contribuindo com o avanço da doença, mascarado por tratamentos contraceptivos.
Para Ana Sofia, a falta de capacidade de alguns profissionais é um fator determinante, mas a insistência em não procurar ajuda por parte das pacientes configura-se como o principal motivo. “Normalmente, apenas quando surge dificuldade de engravidar é que essas mulheres procuram ajuda. Só depois que a doença gera um grande impacto na qualidade de vida e nas práticas diárias de atividades sexuais, afetando as tubas uterinas, diminuindo a qualidade ovariana, interferindo diretamente na fertilidade”, explica.